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Por Alexandre Freire
Apenas 4% dos mais de 148 mil deficientes visuais que vivem na Paraíba concluíram um curso de graduação. Desse contingente, 102 mil pessoas não possuem instrução ou sequer conseguiram terminar o ensino fundamental no estado.
Os dados da Pesquisa Nacional de Saúde, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, revelam que o abismo educacional no Brasil é muito maior do que se pensa. Se faltam investimentos, políticas públicas e vontade por parte dos governantes, sobram determinação, coragem e muita dedicação para vencer as barreiras do dia a dia para quem pensa em alcançar o tão sonhado diploma de nível superior. Assista ao vídeo mais abaixo.
O exemplo da professora doutora aposentada, Joana Belarmino, é prova disso. Vinda de uma família de camponeses do pequeno distrito de Itapetim, em São José do Egito (PE), ela aprendeu desde cedo a enfrentar as dificuldades ao lado dos 12 irmãos, dos quais seis também nasceram cegos.
Aos sete anos de idade, Joana Belarmino foi morar em João Pessoa para ter acesso à educação. A saudade e a distância dos familiares só não foram maiores do que a vontade de aprender. Foi no Instituto dos Cegos da Paraíba, que ela alfabetizou-se e estudou até os 15 anos, no regime de internato.
Ela disse que desde a adolescência já sonhava em ser jornalista e lembra das tentativas de algumas pessoas em desencorajá-la por conta de suas limitações. “O que diziam entrava por um ouvido e saía pelo outro, porque minha vontade de seguir a profissão era muito maior. Acredito ter enveredado nesse caminho por influência da biblioteca do Instituto, já que eu adorava passar horas lendo, viajando nas histórias dos livros. Eram mundos que se abriam em minha cabeça”, contou.
Início do sonho

Joana Belarmino prestou vestibular em 1978, época em que não existiam leis para democratizar o acesso dos deficientes visuais nas instituições de ensino superior do país.
As dificuldades para concluir o recém-criado curso de Comunicação Social na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) ficaram de lado. Joana se destacou em uma turma que apenas ela não enxergava, e já em 1981, quando terminou a graduação, foi contratada para trabalhar no extinto jornal O Norte, considerado o mais importante periódico impresso da época no estado. “Eu era repórter da seção geral e acabava tendo bastante dificuldade para fazer as matérias na rua, porque eu tinha que achar os lugares sozinha. Foi uma grande superação. Na verdade, eu nem entendo como aquilo acontecia. Era um trabalho jornalístico feito a algumas mãos, porque eu precisava de ajuda para conseguir chegar até os entrevistados e achar uma determinada sala, por exemplo”, destacou.
No início dos anos 1990, Joana Belarmino migrou para o já secular jornal A União, periódico oficial do governo do Estado. Lá permaneceu até 1993, quando surgiu a oportunidade de prestar concurso para professor substituto da UFPB. Um ano depois, Joana foi aprovada como professora efetiva do curso de Jornalismo da instituição, onde desenvolveu sua carreira e alcançou o mais alto nível que um docente pode ter na universidade, que é ser titular.
Hoje em dia, aposentada das salas de aula, Joana Belarmino colabora esporadicamente com o Instituto dos Cegos, fazendo formações e lecionando sobre o manuseio da linha braile. “Sou muito grata a essa casa, que foi a responsável pela minha formação e me deu tantas oportunidades”, disse.
Além de jornalista, Joana também atuou como escritora e publicou alguns livros. Atualmente, ela também mantém um blog, onde escreve crônicas, reflexões e artigos.
Exemplo como fonte de inspiração para superar os desafios
O exemplo da professora Joana Belarmino tem sido um dos principais combustíveis na jornada do estudante do 4º período do curso de Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba, Lucas Santos, de 22 anos, também cego.
Morador da cidade de Mamanguape, Lucas tem que enfrentar mais de 100 quilômetros por dia para ir e voltar da universidade em João Pessoa.
Ele conta que além da distância e de ter que acordar cedo para pegar uma carona no carro disponibilizado pela prefeitura, frequentar as aulas lhe coloca diante de desafios diários.
Um deles, talvez o principal, é a falta de acessibilidade. Lucas disse que o centro onde assiste às aulas não dispõe de piso tátil e nem de placas de identificação em braile.
Eu sabia que ia ter muitas dificuldades, mas tô aqui no 4º período. Tem que ter muita resiliência, por conta dessa questão da estrutura da universidade. A gente sabe que melhorou, mas ainda falta muita coisa. No centro que eu estudo, por exemplo, não tem piso tátil, braile na porta, o elevador não funciona há aproximadamente 10 anos, o que é um absurdo. Os professores procuram me ajudar, mas alguns não recebem as instruções adequadas e eu digo: olha, professor, tem que melhorar isso, tem que melhorar aquilo”, afirmou. (Joana Belarmino)

No final do 2º período, Lucas até cogitou desistir do curso por achar que não estava na área certa e que não seria capaz dar conta das atividades na universidade. Ele contou que como se trata de uma coisa que quer muito, de um sonho, decidiu prosseguir com os estudos. “Deu aquela vontade (de desistir), mas quando eu me lembro que é uma coisa que quero muito, que é meu sonho, de trabalhar e ser uma pessoa independente, eu não posso desistir, mas assim, que essas dificuldades me deixam um pouco triste às vezes, isso é verdade”, comentou.
Apesar das limitações, Lucas não perde o sorriso no rosto e já planeja o futuro quando terminar o curso: quer ser correspondente internacional. Segundo ele, é uma área que oferece muitas possibilidades de trabalho aos profissionais da comunicação.
Questionado se teria alguém em quem se espelha para continuar em busca do seu sonho, Lucas não titubeou: “Tem uma pessoa que me inspira muito, ela foi minha professora, inclusive do curso de Jornalismo. Ela é Joana Belarmino, que é deficiente visual também e conseguiu atingir o maior nível que um professor pode alcançar, o que é um exemplo para todos nós. Quando ela estudou, com certeza, a universidade era um lugar muito mais difícil do que hoje em dia, por isso também penso nisso: pra ela foi muito difícil, pra mim tá sendo muito difícil, e pra outros foi muito difícil, pra várias pessoas, mas a gente não deve desistir, se é o que a gente quer, tem que ir atrás”, afirmou.
A educação como opção

A educação também foi o caminho escolhido por Gilson Batista, de 44 anos. Deficiente visual desde que nasceu, ele se tornou pedagogo e hoje é funcionário do Instituto dos Cegos da Paraíba há aproximadamente oito anos.
Natural da cidade de Parelhas, no Rio Grande do Norte, Gilson precisou se mudar para João Pessoa aos nove anos para estudar e morar no Instituto dos Cegos, onde permaneceu como aluno até os 18 anos de idade.
Gilson lembra das dificuldades que superou para terminar o curso de Pedagogia. Ele disse que na época, como o acesso não existia acesso a computadores, dependia que alguém gravasse o material das aulas em uma fita K7. “O cenário era totalmente diferente, não existia a lei das cotas, e antes dessa evolução, você competia de igual para igual como qualquer outra pessoa. Não que isso seja errado, mas era mais dificultoso”, afirmou.
Mesmo diante das dificuldades, o desejo de ter uma profissão e tornar-se independente o motivou a seguir lutando pelo sonho.
Ao relembrar sua trajetória, Gilson fez questão de motivar aqueles que pensam em cursar o ensino superior, mas estão um pouco desacreditados. “A caminhada não é tão fácil, mas a gente pode chegar lá. Se tantas pessoas, quando não existiam recursos, conseguiram, por que esse pessoal jovem não pode conseguir também? Espero que eles nunca desistam dos seus sonhos, pois somos alimentados de sonhos, e se a gente deixa de sonhar, a gente morre junto com eles”, arrematou.
Escassez de material ainda é uma realidade
O avanço tecnológico permitiu um melhor acesso à informação, sobretudo com o advento dos leitores de tela, programas de computador que convertem o texto em áudio e possibilitam aos cegos navegarem na internet.
Apesar desse avanço, ainda há uma carência na oferta de materiais em braile, principal sistema utilizado pelos deficientes visuais há quase 200 anos. Estudiosos destacam a importância do sistema não só para possibilitar efetivamente a leitura, mas também pelo contato com a ortografia.
Os esforços para mudar essa realidade apontam para um debate necessário e desafiador.
“Hoje, por exemplo, se você vai em qualquer livraria, você compra o livro que quer. Se você quer comprar um livro, vai na internet, e tem acesso imediato. Já a pessoa que não enxerga, não tem essa facilidade toda de encontrar a obra literária que ela quer. Muitas vezes, ela depende que uma plataforma disponibilize o arquivo digital ou PDF, os e-books, e para produzir esse material em braile é bem mais desafiador também, porque hoje ter uma impressora em braile não é tão simples: uma impressora em braile custa em média em torno de R$ 20 mil, R$ 25 mil”, disse Gilson Batista.
Assista ao vídeo:
O que diz a lei?
O acesso à educação foi, durante muito tempo, algo inatingível para grande parte da população, principalmente no que diz respeito ao ensino superior. Para tentar mudar essa realidade, as leis brasileiras estabelecem direitos para a população deficiente e deveres dos entes públicos e também da sociedade.
Em vigor há quase sete anos, a lei nº 13.409/2016, de autoria do então senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), instituiu cotas para pessoas com deficiência em universidades públicas. Até então os deficientes não eram contemplados com esse benefício.
A legislação representou uma importante conquista para os deficientes e é considerada como um primeiro passo para se corrigir uma injustiça histórica com esse público.
O estudante Lucas Santos é um dos beneficiados. Em 2020, após uma tentativa sem sucesso, ele conseguiu aprovação para o curso de Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) utilizando a lei de cotas.
Ele disse que sempre sonhou em ser jornalista e se vê atuando no mercado de trabalho quando se formar. “Eu sempre gostei da área e decidi seguir a profissão desde o ensino fundamental. Eu sabia que ia ter muitas dificuldades, mas eu sempre confiei que ia dar certo. Me preparei, estudei bastante e consegui passar”, revelou.
Educação inclusiva como direito
Para o advogado Wendel Macedo, a educação inclusiva é a que estabelece um processo educacional adequado e direcionado a uma diversidade de pessoas, que possuem esse direito de acordo com suas peculiaridades e especificidades. “Essa educação se inicia na Educação Básica e deve continuar sendo realizada na Educação Superior”, destacou.
Ele lembrou que o artigo 27, do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015), estabelece que a educação é um direito da pessoa com deficiência, devendo à ela ser assegurado um Sistema Educacional Inclusivo para todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida. “Essa garantia deve alcançar o máximo desenvolvimento possível de talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais, sociais, conforme as características, as qualidades, as especificidades, os interesses, as necessidades de cada um”, pontuou.
Um pedido especial
Mesmo com as inúmeras dificuldades que enfrenta, Lucas Santos não tem dúvidas ao afirmar que vale a pena apostar na educação como instrumento de transformação. O estudante de Jornalismo acredita que o conhecimento abre portas e que sem esse suporte tudo se torna mais difícil. “A gente sem educação faz as coisas, mas é muito mais difícil, porque o conhecimento é algo que ninguém toma da gente. As pessoas podem roubar várias coisas nossas, mas o conhecimento, o fato da gente saber os nossos direitos, conhecer as coisas, faz muita diferença nas nossas vidas”, comentou.
Lucas também disse que muitas barreiras podiam ser rompidas caso os governantes tivessem mais atenção com os deficientes, não só com os que estão nas universidades, mas em todas as esferas da sociedade.
Segundo ele, existem problemas simples de serem resolvidos, mas que esbarram na falta de vontade das autoridades. “Nós passamos por muitas dificuldades ainda e existem coisas que são muito simples de se fazer, é só a vontade das autoridades, do poder público de fazer. Por isso a mensagem que eu deixo que as autoridades olhem mais para essa questão dos deficientes, não só nas universidades, mas na sociedade em geral”, observou.